segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O carnaval e a cultura do descartável

         
          O carnaval me fez recordar do tema da cultura do descartável, que vigora em nossos dias. Nestes dias, há quem esteja procurando muita bebida e sexo. Vive-se a ideia de que “ninguém é de ninguém!” e quem for contra esta ideologia é considerado ultrapassado e careta. Segundo esta ideologia, valores como respeito e responsabilidade podem ser descartados. “Vamos beber muita cerveja e comer muita mulher!”, gritava um jovem embriagado na Praça Sete, no centro de Belo Horizonte. Expressões como esta não são ignoradas porque muita gente enxerga no outro uma coisa a ser usada e descartada. O verbo “comer” relacionado à mulher é a prova disso: desvinculado de qualquer sentimento nobre, há mulheres que se permitem ser “comidas” por muitos homens. Estes as utilizam e, em seguida, as descartam.

            Este problema não se restringe ao período do carnaval, nem está exclusivamente ligado ao tema da sexualidade. Vamos, brevemente, oferecer um olhar mais abrangente, analisando o tema nas relações interpessoais (amizade, namoro e casamento), na economia de mercado capitalista e na religião. Trata-se de um tema que precisa ser discutido pelas instituições família, escola, igreja e estado, tendo em vista a humanização das pessoas e das instituições. Para a necessária mudança de atitude, a mudança de mentalidade é essencial. Por isso, tal discussão é sempre bem-vinda e deve ser cada vez mais promovida e/ou incrementada. Claro que num curto espaço de um artigo breve não abordaremos todas as facetas do problema, mas ofereceremos apenas algumas provocações.

            Nas relações interpessoais está se tornando comportando normal o fato de uma pessoa procurar a outra para simplesmente aproveitar-se dela, visando a satisfação de seus próprios interesses. Quando estes são satisfeitos, aqueles que contribuíram para tão vergonhosa situação são descartados. Neste sentido, não há amizade, nem namoro, nem casamento, mas oportunidades que precisam ser aproveitadas. Nestes três tipos de relações, o amor deveria ser o fundamento, em vista da felicidade. As pessoas que se aproveitam das outras nestas relações costumam falar e demonstrar amor, mas tudo não passa de uma mentira diabolicamente elaborada com belas palavras, presentes e gestos de carinho que escondem as reais intenções.

            Desse modo, quando conseguem o que realmente querem, o outro é descartado com requintes de frieza, rejeição e indiferença. Quem descartou trata o outro como se este estivesse morrido. Como este outro não tem mais nada a oferecer, então é tratado com desprezo, caindo no esquecimento. Por parte de quem desprezou não há sofrimento porque não existia amor. Como aquele que foi desprezado não passava de uma coisa, então não há nenhum sentimento no ato de descartar. Acontece como quando alguém utiliza um copo descartável e depois joga fora. Não há nenhum vínculo afetivo entre o copo e a pessoa porque o copo é um mero meio para a satisfação da sede de água. Quando não há amor, ao descartar o outro, não há nenhum sentimento de perda. Não se perde nada, pois já se ganhou o que se almejava.

            Isto explica porque pessoas frias são, geralmente, perigosas. No silêncio de sua intimidade planejam formas eficientes para a satisfação de seus interesses mesquinhos. Assim, demonstram quem realmente são: egoístas, individualistas, materialistas e, naturalmente, golpistas. Elas desconhecem o verdadeiro valor e sentido do amor, da solidariedade, do perdão, do encontro com o outro, da alegria e da reciprocidade. Interiormente, costumam ser angustiadas, ansiosas, ressentidas, rancorosas porque suas consciências não as deixam em paz. Elas sabem que estão equivocadas, que trilham um caminho que não traz paz de espírito nem salvação. 

Quando descobertas em suas tramas, geralmente, são abandonadas no seu isolamento e na sua falta de amor. Sofrem bastante, mas não o suficiente para renunciarem ao egoísmo que as tornam insensíveis. Para estas pessoas, os problemas do mundo não lhes interessam, pois estão preocupadas consigo mesmas, com o próprio bem-estar. “Não quero saber de nada nem de ninguém! O que quero é ser feliz!”: esta é a lógica que norteia suas vidas.  Nesta lógica não há espaço para o amor a Deus e ao próximo. Este é um dos fatores que explicam porque muitas amizades, namoros e casamentos não duram: as pessoas renunciam ao amor, aderindo à satisfação de seus próprios interesses, vivendo a cultura do descartável.

            Na economia de mercado capitalista, a pessoa valorizada é aquela que consome. Quem não consome não tem valor nenhum. As pessoas são tratadas como meros destinatários de serviços e produtos a serem consumidos. O mercado cria necessidades para seus destinatários. O lucro é a meta. Tudo é calculado ao infinito. Deve-se consumir, desenfreadamente. Tudo é produzido para durar pouco. Para não ser excluído é necessário estar na moda. Esta dita o figurino do momento. Aparece a ditadura do corpo perfeito. O mercado dita o que as pessoas devem comer, vestir, calçar etc. A ideologia de mercado ensina até a maneira de pensar e de ser. Direta e indiretamente, através da mídia, que veicula a propaganda, as pessoas são aliciadas a viverem da maneira como manda o mercado. Todos tendem a fazer e consumir as mesmas coisas. Isto gera uma falsa alegria, um gozo passageiro, que quando passa, dar lugar ao vazio.

            O mercado ensina que além das mercadorias, as pessoas também são coisas, objetos de consumo. Mulheres e homens podem ser comprados e vendidos para ser consumidos. Trata-se da sexualidade mercadológica. O corpo humano, principalmente o feminino, é utilizado para atrair e despertar o desejo dos consumidores. O mercado trabalha em função dos desejos das pessoas, manipulando-os, inteligentemente. As pessoas consomem ao sentir vontade e esta está ligada ao desejo. Dominada pelo desejo, a vontade perde seu controle. Explora-se, demasiadamente, os sentidos humanos, especialmente a visão e o paladar. Descontroladas, as pessoas se endividam, mas isto não lhes é motivo de preocupação porque o que importa é consumir. O mercado as convence de que viver endividado é normal, o anormal é não viver consumindo. Aqui não estamos nos referindo à satisfação das necessidades básicas, mas ao consumo do supérfluo, do desnecessário.

            Tudo o que o mercado produz atualmente tem curta durabilidade porque tudo é produzido para ser jogado no lixo em pouco tempo. Nunca se produziu tanto lixo na história da humanidade como em nossos dias. O meio ambiente não suporta mais tanto lixo! Isto tem provocado um desastroso desequilíbrio na natureza, mas, geralmente, as pessoas não estão preocupadas com isso. O discurso sobre a proteção ao meio ambiente costuma ser desprezado pela maioria. Esta pensa que a natureza é inesgotável, que suporta a sede insaciável do ser humano dominado pelo capitalismo selvagem. O cuidado pela natureza é descartado. Apesar da crise de escassez de água, atualmente vivida no Brasil, a maioria das pessoas não está dando a mínima atenção ao necessário cuidado para com a natureza, mãe e mestra da vida.

            Por fim, consideremos o tema da cultura do descartável na religião. Como estamos no Brasil, e a maioria do nosso povo se declara cristã, então nossas considerações se referem, especialmente, aos católicos e aos não-católicos, também conhecidos como “evangélicos”, terminologia não muito correta quando assistimos a determinados abusos em nome do Evangelho. Evangélica é a pessoa que vive de acordo com o Evangelho de Jesus. Por isso, considerar evangélicos todos os não-católicos é correr certo risco. Certamente, há entre muitos aqueles que, de fato, são evangélicos. Afinal de contas, como ocorre a cultura do descartável na religião? Neste quesito, sintam-se contemplados os demais crentes de outras religiões. Por incrível que pareça, este último quesito de nossas meditações é mais complexo do que os demais porque envolve o tema da fé e da transcendência. Portanto, por mais que queiramos esgotá-lo, ficará, como sempre, espaço para maiores desdobramentos.

            A função precípua da religião é a de religar o ser humano a Deus. No Cristianismo, este Deus se revelou na pessoa de Jesus de Nazaré. Não é um desconhecido, oculto nas alturas dos céus, mas é o Emanuel, Deus que permanece conosco. O seguimento de Jesus se encontra no centro da genuína espiritualidade cristã e, assim, a religião é chamada a oferecer às pessoas a oportunidade de fazerem uma experiência com Deus. Esta experiência não é algo ligado a um sentimento de bem-estar momentâneo. O Cristianismo propõe outra coisa, que é permanente: o seguimento de Jesus de Nazaré. Este seguimento constrói o Reino de Deus. Aqui está o que podemos chamar de núcleo fundamental da fé cristã e do Evangelho de Jesus. Trata-se do essencial.

            Ocultando o essencial, a religião tende a oferecer outras coisas, e não a proposta de Jesus. Com o surgimento do neopentecostalismo, salvo exceções, apareceu a Teologia da Prosperidade com suas promessas de sucesso e bem-estar. Criou-se a religião voltada para o bem-estar econômico e espiritual. Deus é tratado como fonte de bênçãos, curas e bens materiais. Prega-se a ideia de que aquele que crê recebe tudo de Deus. A fé é fonte de prosperidade. A religião é transformada numa agência de milagres. As pessoas acorrem à ela para encontrarem soluções eficazes para seus problemas materiais e espirituais. Não se estimula nem se promove um autêntico encontro com Deus. Não há conversão, mas um negócio com Deus. Quando encontram a “solução” para seus problemas, geralmente Deus é descartado porque é tratado como o “tapa-buracos”, o suporte, a fonte de bênçãos e de bens.

            Assim como no mercado financeiro, o mercado religioso lida com o imediatismo. Deus tem que se submeter aos desejos das pessoas e tem que socorrê-las no exato momento que elas querem. Geralmente, elas não procuram conhecer e viver a vontade de Deus, mas impõem a própria vontade. Deus não é livre nem libertador. Ele não tem escolha. A única alternativa que lhe resta é operar o milagre sem demora. Prega-se que o tamanho da graça está ligado à quantidade financeira da oferta dada às Igrejas. A generosidade divina está condicionada à oferta. Quanto maior a oferta, maior a graça! Promove-se chantagens de toda ordem para incutir essa ideologia na cabeça das pessoas e tudo é feito com tanta emoção que elas passam a acreditar que realmente Deus age dessa forma.

A manipulação de inúmeras passagens bíblicas ajuda os pastores mercenários a terem êxito no seu negócio. Milhões de pessoas não esclarecidas caem nesse tipo de golpe em nome da fé. Na relação entre povo e pastores, e entre Deus e o povo acontece a cultura do descartável. Neste falso Cristianismo não há comunidade nem povo de Deus, mas investimento financeiro em vista do sucesso. As pessoas entram nos templos religiosos como se estivessem entrando no shopping: querem consumir, comprar bênçãos, fazer um negócio com Deus, satisfazer seus desejos.

Não adoram o Deus e Pai de Jesus, mas criam um ídolo, praticando, assim, o gravíssimo pecado da idolatria. Demônios e dinheiro são as duas palavras que mais aparecem na pregação dos pastores. Não há nada de divino, tudo é profanamente pensado e realizado, em vista da grandiosa arrecadação financeira. O mercado religioso faz circular muito dinheiro. Este é abundante, enquanto que a caridade praticamente não existe, salvo louváveis exceções. Este não é um problema exclusivo de inúmeras denominações religiosas neopentecostais, mas também de alguns segmentos das Igrejas cristãs tradicionais.

Para concluir, um pensamento para resumir estas breves considerações: enquanto cristãos, precisamos redescobrir a centralidade do Evangelho de Jesus, que é o amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Amar como Jesus amou: na gratuidade, na generosidade, na alegria e na liberdade. Somente assim a cultura do descartável poderá ser vencida. O amor vence o egoísmo e a indiferença. Amar de verdade é cuidar do outro, assumir a responsabilidade para com ele.

Na cultura do descartável ninguém cuida de ninguém e ninguém é responsável por nada. Relega-se ao destino, à má sorte e ao acaso os males que afetam a humanidade. Precisamos recuperar o encontro com o rosto do outro, rosto que interpela, que revela, que convida para o amor. Somente assim, aprenderemos a sermos mais tolerantes e pacientes diante das falhas do outro, mais humildes e atentos às necessidades que surgem. Enfim, descobriremos que outro mundo é possível quando aprendermos, de fato, a sermos fraternos. O amor nos faz irmãos e liberta-nos de todo mal, nos humaniza e nos salva.


Tiago de França

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