O carnaval me fez
recordar do tema da cultura do descartável, que vigora em nossos dias. Nestes
dias, há quem esteja procurando muita bebida e sexo. Vive-se a ideia de que
“ninguém é de ninguém!” e quem for contra esta ideologia é considerado
ultrapassado e careta. Segundo esta ideologia, valores como respeito e
responsabilidade podem ser descartados. “Vamos beber muita cerveja e comer
muita mulher!”, gritava um jovem embriagado na Praça Sete, no centro de Belo
Horizonte. Expressões como esta não são ignoradas porque muita gente enxerga no
outro uma coisa a ser usada e descartada. O verbo “comer” relacionado à mulher
é a prova disso: desvinculado de qualquer sentimento nobre, há mulheres que se
permitem ser “comidas” por muitos homens. Estes as utilizam e, em seguida, as
descartam.
Este problema não se restringe ao período do carnaval,
nem está exclusivamente ligado ao tema da sexualidade. Vamos, brevemente,
oferecer um olhar mais abrangente, analisando o tema nas relações interpessoais
(amizade, namoro e casamento), na economia de mercado capitalista e na
religião. Trata-se de um tema que precisa ser discutido pelas instituições família,
escola, igreja e estado, tendo em vista a humanização das pessoas e das
instituições. Para a necessária mudança de atitude, a mudança de mentalidade é
essencial. Por isso, tal discussão é sempre bem-vinda e deve ser cada vez mais
promovida e/ou incrementada. Claro que num curto espaço de um artigo breve não
abordaremos todas as facetas do problema, mas ofereceremos apenas algumas
provocações.
Nas relações
interpessoais está se tornando comportando normal o fato de uma pessoa
procurar a outra para simplesmente aproveitar-se dela, visando a satisfação de
seus próprios interesses. Quando estes são satisfeitos, aqueles que
contribuíram para tão vergonhosa situação são descartados. Neste sentido, não
há amizade, nem namoro, nem casamento, mas oportunidades que precisam ser
aproveitadas. Nestes três tipos de relações, o amor deveria ser o fundamento,
em vista da felicidade. As pessoas que se aproveitam das outras nestas relações
costumam falar e demonstrar amor, mas tudo não passa de uma mentira
diabolicamente elaborada com belas palavras, presentes e gestos de carinho que
escondem as reais intenções.
Desse modo, quando conseguem o que realmente querem, o
outro é descartado com requintes de frieza, rejeição e indiferença. Quem
descartou trata o outro como se este estivesse morrido. Como este outro não tem
mais nada a oferecer, então é tratado com desprezo, caindo no esquecimento. Por
parte de quem desprezou não há sofrimento porque não existia amor. Como aquele
que foi desprezado não passava de uma coisa, então não há nenhum sentimento no
ato de descartar. Acontece como quando alguém utiliza um copo descartável e
depois joga fora. Não há nenhum vínculo afetivo entre o copo e a pessoa porque
o copo é um mero meio para a satisfação da sede de água. Quando não há amor, ao
descartar o outro, não há nenhum sentimento de perda. Não se perde nada, pois já
se ganhou o que se almejava.
Isto explica porque pessoas frias são, geralmente,
perigosas. No silêncio de sua intimidade planejam formas eficientes para a
satisfação de seus interesses mesquinhos. Assim, demonstram quem realmente são:
egoístas, individualistas, materialistas e, naturalmente, golpistas. Elas
desconhecem o verdadeiro valor e sentido do amor, da solidariedade, do perdão,
do encontro com o outro, da alegria e da reciprocidade. Interiormente, costumam
ser angustiadas, ansiosas, ressentidas, rancorosas porque suas consciências não
as deixam em paz. Elas sabem que estão equivocadas, que trilham um caminho que
não traz paz de espírito nem salvação.
Quando
descobertas em suas tramas, geralmente, são abandonadas no seu isolamento e na
sua falta de amor. Sofrem bastante, mas não o suficiente para renunciarem ao
egoísmo que as tornam insensíveis. Para estas pessoas, os problemas do mundo
não lhes interessam, pois estão preocupadas consigo mesmas, com o próprio
bem-estar. “Não quero saber de nada nem de ninguém! O que quero é ser feliz!”:
esta é a lógica que norteia suas vidas. Nesta
lógica não há espaço para o amor a Deus e ao próximo. Este é um dos fatores que
explicam porque muitas amizades, namoros e casamentos não duram: as pessoas
renunciam ao amor, aderindo à satisfação de seus próprios interesses, vivendo a
cultura do descartável.
Na economia de
mercado capitalista, a pessoa valorizada é aquela que consome. Quem não
consome não tem valor nenhum. As pessoas são tratadas como meros destinatários
de serviços e produtos a serem consumidos. O mercado cria necessidades para
seus destinatários. O lucro é a meta. Tudo é calculado ao infinito. Deve-se
consumir, desenfreadamente. Tudo é produzido para durar pouco. Para não ser
excluído é necessário estar na moda. Esta dita o figurino do momento. Aparece a
ditadura do corpo perfeito. O mercado dita o que as pessoas devem comer,
vestir, calçar etc. A ideologia de mercado ensina até a maneira de pensar e de
ser. Direta e indiretamente, através da mídia, que veicula a propaganda, as
pessoas são aliciadas a viverem da maneira como manda o mercado. Todos tendem a
fazer e consumir as mesmas coisas. Isto gera uma falsa alegria, um gozo
passageiro, que quando passa, dar lugar ao vazio.
O mercado ensina que além das mercadorias, as pessoas
também são coisas, objetos de consumo. Mulheres e homens podem ser comprados e
vendidos para ser consumidos. Trata-se da sexualidade mercadológica. O corpo
humano, principalmente o feminino, é utilizado para atrair e despertar o desejo
dos consumidores. O mercado trabalha em função dos desejos das pessoas,
manipulando-os, inteligentemente. As pessoas consomem ao sentir vontade e esta
está ligada ao desejo. Dominada pelo desejo, a vontade perde seu controle. Explora-se,
demasiadamente, os sentidos humanos, especialmente a visão e o paladar. Descontroladas,
as pessoas se endividam, mas isto não lhes é motivo de preocupação porque o que
importa é consumir. O mercado as convence de que viver endividado é normal, o
anormal é não viver consumindo. Aqui não estamos nos referindo à satisfação das
necessidades básicas, mas ao consumo do supérfluo, do desnecessário.
Tudo o que o mercado produz atualmente tem curta
durabilidade porque tudo é produzido para ser jogado no lixo em pouco tempo.
Nunca se produziu tanto lixo na história da humanidade como em nossos dias. O
meio ambiente não suporta mais tanto lixo! Isto tem provocado um desastroso
desequilíbrio na natureza, mas, geralmente, as pessoas não estão preocupadas
com isso. O discurso sobre a proteção ao meio ambiente costuma ser desprezado
pela maioria. Esta pensa que a natureza é inesgotável, que suporta a sede
insaciável do ser humano dominado pelo capitalismo selvagem. O cuidado pela
natureza é descartado. Apesar da crise de escassez de água, atualmente vivida
no Brasil, a maioria das pessoas não está dando a mínima atenção ao necessário
cuidado para com a natureza, mãe e mestra da vida.
Por fim, consideremos o tema da cultura do descartável na religião. Como estamos no Brasil, e
a maioria do nosso povo se declara cristã, então nossas considerações se
referem, especialmente, aos católicos e aos não-católicos, também conhecidos
como “evangélicos”, terminologia não muito correta quando assistimos a
determinados abusos em nome do Evangelho. Evangélica é a pessoa que vive de
acordo com o Evangelho de Jesus. Por isso, considerar evangélicos todos os
não-católicos é correr certo risco. Certamente, há entre muitos aqueles que, de
fato, são evangélicos. Afinal de contas, como ocorre a cultura do descartável
na religião? Neste quesito, sintam-se contemplados os demais crentes de outras
religiões. Por incrível que pareça, este último quesito de nossas meditações é
mais complexo do que os demais porque envolve o tema da fé e da transcendência.
Portanto, por mais que queiramos esgotá-lo, ficará, como sempre, espaço para
maiores desdobramentos.
A função precípua da religião é a de religar o ser humano
a Deus. No Cristianismo, este Deus se revelou na pessoa de Jesus de Nazaré. Não
é um desconhecido, oculto nas alturas dos céus, mas é o Emanuel, Deus que
permanece conosco. O seguimento de Jesus se encontra no centro da genuína
espiritualidade cristã e, assim, a religião é chamada a oferecer às pessoas a
oportunidade de fazerem uma experiência com Deus. Esta experiência não é algo
ligado a um sentimento de bem-estar momentâneo. O Cristianismo propõe outra
coisa, que é permanente: o seguimento de Jesus de Nazaré. Este seguimento
constrói o Reino de Deus. Aqui está o que podemos chamar de núcleo fundamental
da fé cristã e do Evangelho de Jesus. Trata-se do essencial.
Ocultando o essencial, a religião tende a oferecer outras
coisas, e não a proposta de Jesus. Com o surgimento do neopentecostalismo,
salvo exceções, apareceu a Teologia da Prosperidade com suas promessas de
sucesso e bem-estar. Criou-se a religião voltada para o bem-estar econômico e
espiritual. Deus é tratado como fonte de bênçãos, curas e bens materiais. Prega-se
a ideia de que aquele que crê recebe tudo de Deus. A fé é fonte de prosperidade.
A religião é transformada numa agência de milagres. As pessoas acorrem à ela
para encontrarem soluções eficazes para seus problemas materiais e espirituais.
Não se estimula nem se promove um autêntico encontro com Deus. Não há
conversão, mas um negócio com Deus. Quando encontram a “solução” para seus
problemas, geralmente Deus é descartado porque é tratado como o “tapa-buracos”,
o suporte, a fonte de bênçãos e de bens.
Assim como no mercado financeiro, o mercado religioso
lida com o imediatismo. Deus tem que se submeter aos desejos das pessoas e tem
que socorrê-las no exato momento que elas querem. Geralmente, elas não procuram
conhecer e viver a vontade de Deus, mas impõem a própria vontade. Deus não é
livre nem libertador. Ele não tem escolha. A única alternativa que lhe resta é
operar o milagre sem demora. Prega-se que o tamanho da graça está ligado à
quantidade financeira da oferta dada às Igrejas. A generosidade divina está
condicionada à oferta. Quanto maior a oferta, maior a graça! Promove-se chantagens
de toda ordem para incutir essa ideologia na cabeça das pessoas e tudo é feito
com tanta emoção que elas passam a acreditar que realmente Deus age dessa
forma.
A
manipulação de inúmeras passagens bíblicas ajuda os pastores mercenários a
terem êxito no seu negócio. Milhões de pessoas não esclarecidas caem nesse tipo
de golpe em nome da fé. Na relação entre povo e pastores, e entre Deus e o povo
acontece a cultura do descartável. Neste falso Cristianismo não há comunidade
nem povo de Deus, mas investimento financeiro em vista do sucesso. As pessoas
entram nos templos religiosos como se estivessem entrando no shopping: querem consumir, comprar
bênçãos, fazer um negócio com Deus, satisfazer seus desejos.
Não
adoram o Deus e Pai de Jesus, mas criam um ídolo, praticando, assim, o
gravíssimo pecado da idolatria. Demônios e dinheiro são as duas palavras que
mais aparecem na pregação dos pastores. Não há nada de divino, tudo é
profanamente pensado e realizado, em vista da grandiosa arrecadação financeira.
O mercado religioso faz circular muito dinheiro. Este é abundante, enquanto que
a caridade praticamente não existe, salvo louváveis exceções. Este não é um
problema exclusivo de inúmeras denominações religiosas neopentecostais, mas
também de alguns segmentos das Igrejas cristãs tradicionais.
Para
concluir, um pensamento para resumir estas breves considerações: enquanto
cristãos, precisamos redescobrir a centralidade do Evangelho de Jesus, que é o
amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Amar como Jesus
amou: na gratuidade, na generosidade, na alegria e na liberdade. Somente assim
a cultura do descartável poderá ser vencida. O amor vence o egoísmo e a
indiferença. Amar de verdade é cuidar do outro, assumir a responsabilidade para
com ele.
Na
cultura do descartável ninguém cuida de ninguém e ninguém é responsável por
nada. Relega-se ao destino, à má sorte e ao acaso os males que afetam a
humanidade. Precisamos recuperar o encontro com o rosto do outro, rosto que
interpela, que revela, que convida para o amor. Somente assim, aprenderemos a
sermos mais tolerantes e pacientes diante das falhas do outro, mais humildes e
atentos às necessidades que surgem. Enfim, descobriremos que outro mundo é
possível quando aprendermos, de fato, a sermos fraternos. O amor nos faz irmãos
e liberta-nos de todo mal, nos humaniza e nos salva.
Tiago
de França
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